quinta-feira, 12 de março de 2009

Aparição

Já anoitecia quando algo me tirou de casa. Fui puxada por uma força diferente que me fez caminhar em direção à bicicleta e sair a passear pelos arredores de minha casa. Nunca fazia isso, por achar perigoso andar por lugares ermos àquelas horas. Uma vontade irresistível, quase um desejo que eletrizava meu corpo, me impulsionou a andar no meio da noite, descobrindo caminhos, guiada pelos olhos da intuição, sentido despertado pela noite, com vontade de ver não sei o quê.
Eu ia num esforço de enxergar no escuro, mas com a direção já traçada por aquele impulso louco que me conduzia. Pedalava, pedalava, dava pulos saltando obstáculos na estrada vazia. Varava a noite, suada, com o coração aflito, as pernas firmes, na certeza de chegar, não sabia aonde.
Sentia o vento arranhando meu rosto. Volta e meia esbarrava com insetos que se chocavam com meu corpo no seu vôo errante. Quase atropelei um pequeno lagarto que perseguia uma presa, ele que já estava habituado à escuridão.
As árvores se mexiam e eu não podia deixar de notar aqueles vultos que me assombravam. O suor me escorria pelo rosto, um suor frio que refrescava o calor da tensão.
De súbito estanquei, como que fosse brecada por uma força estranha. Eu não compreendia muito bem, mas de repente quis interromper a caminhada e, sentada na bicicleta, voltei a cabeça para trás. Fiquei paralisada. Os meus olhos caíram direto nela, nos seus olhos verdes claros. Foi um susto e um prazer. Misto de surpresa e alegria. Ela era pequena, muito menor do que eu poderia imaginar e isto lhe conferia ainda mais candura. Era clara. Quieta me observava. Ela me seduziu. Aquele momento foi indescritível. Voltei-me para ela bem devagar. Eu que sempre tive adoração por elas, que guardo junto aos meus livros vários exemplares de todos os tamanhos, cores e materiais. Elas que para mim representam o mistério, o oculto, a noite. Elas que simbolizam o magnetismo, a profundidade e o poder das sombras. Vibrei. Meu corpo parecia ser percorrido por uma corrente de prazer. Fitei seu rosto pequeno, fixei meus olhos no seu olhar, me sentia atraída por aqueles olhos que queriam me prender, mas olhei mais profundamente, me transmutei e tentei dominá-la pelo olhar, seus olhos ficaram presos nos meus e, na tentativa inútil de me hipnotizar, ela cedeu. Não agüentou sustentar meu olhar e soltou um grito forte, sumindo para longe, desprendida do meu poder. Ela fugiu, não quis ficar, teve medo de uma profundidade talvez semelhante à dela. Não quis se perder num poço fundo de águas escuras, talvez mais escuras que as delas. Foi boba. Não sabia que era paixão, que foi por pura paixão que mergulhei naqueles olhos verdes, sedenta de beber naquelas águas, de sondar seus mistérios e me perder neles.
Quem sabe se ela permitisse ficar por mais um tempo estaria fecundada, mansa, e o som emitido seria então um grito de prazer?
Voltei para casa pedalando devagar no meio da noite, com a lembrança da figura de cor bege, com traços mais escuros nas asas, pousada sobre o mourão de uma cerca... a primeira coruja que vi na vida.

Consciência

Vejo o céu claro de um azul apaziguador, com chumaços de nuvem algodão branco ao longe e corre um vento forte que balança os toldos nos prédios vizinhos ao mesmo tempo em que acaricia a pele do meu rosto espectador. Não há ruídos com personalidade lá fora. São apenas sons de pássaros que sobrevoam as árvores ou latidos de cães preguiçosos na hora do almoço, gritos de crianças nos apartamentos ou correndo nas ruas próximas. São barulhos de vida fora de mim que me acalmam, não me trazem nenhuma história conhecida, nem expressam os conflitos que me dizem respeito. É como se minh’alma planasse sobre a densidade das emanações das vidas de todas as pessoas que moram ou passam por perto de onde vivo. Da janela observo o mundo. Não com um olhar curioso como fiz tantas vezes, mas com todos os sentidos e além deles, tentando apreender as vibrações de vida em torno.
O céu distante me traz a consciência da vida além da materialidade. Tenho saudade de pessoas que já se foram e me eram caras e saudade antecipada das que ainda irão e, no mesmo momento em que aperta o peito a dor da perda, me sinto expandir para uma nova realidade, em que nada nos pode limitar, em que podemos chegar aonde o que somos permitir. Esta liberdade que a consciência da morte me traz perpassa todo meu ser, me revigora, me dá esperança, aquece meu coração humano. É vida, é plenitude, é equilíbrio e serenidade.
Hoje, meu olhar antes curioso pelo externo, mesmo que representasse aspectos do meu ser, se volta agora para dentro, onde encontra o silêncio e busca equilíbrio e paz. É nesta fonte que procuro as respostas para entender o que o olhar para fora encontra de perplexo.

Simbiose

Eu hoje estou tão frágil que o choro vem a qualquer descuido meu...
Acabei de reparar no sorriso de minha mãe. Por que será que o sorriso dela é capaz de encher de alegria o ambiente? Pode iluminar, incendeia o meu olhar e dispara a flecha do entusiasmo. Acho que meu interior é o espelho do que vejo no olhar de minha mãe. Sim, porque qualquer oscilação que eu perceba nela me atinge em cheio, modificando para melhor ou pior.
Que coisa estranha ser vinculada assim a outra pessoa! E é tão profundo, tão vital, tão louco... diferente até da mais profunda ligação amorosa, já que não depende do meu desejo. É como reação em cascata dos processos orgânicos: não se tem controle.
Como é bom, como me enche de vida o sorriso de minha mãe! Que alívio me dá olhar o brilho nos olhos dela, sentir o seu entusiasmo que me conecta com a melhor parte de mim!
Que coisa tão estranha... por ser tão forte, tão arrasadora e, por isso mesmo, tão frágil. Como é difícil ser tão vulnerável, ter meu ser dependente do ser de outra pessoa.
Mas que lindo! Que refrescante! Que alegria o sorriso de minha mãe!

Cássia

Brilho que invoca a alma,
Calma que faz transbordar de alegria,
Sopro de vida em minha existência,
Emoção tanto tempo contida,
Desabrochando com sua chegada.
Amada menina, tão esperada,
Tão querida e tão linda,
Pinturinha traçada pelo Artista Maior.
Cássia criança,
Esperança de nova vida,
Fogo que queima e purifica
O coração lavado em lágrimas
Pela emoção de tê-la perto agora.
Linda flor acácia viçosa,
Mãos de princesa,
Olhos castanhos poderosos,
Boquinha vermelha e carnuda,
Miúda e já plena de grandeza.
Realeza absoluta
Entre nós, seus súditos, carregados de paixão.

Viagem a Vidas Passadas

Eu sonho com a sua cara. Não a cara que você tem, mas a que poderá ter se quiser. Não um sonho de olhos fechados. Mas um sonho de esperança. Vejo estampada no seu rosto toda a verdade de suas vidas. E me deslumbro com o que é, sem rodeios, nem dissimulações, nem máscaras. Apenas o que é para quem sabe ver. Choro de olhar, porque me vejo também nas suas dores. Choro ao percebê-las porque posso compreendê-lo. Choro de alegria por também me ver no que é bom em você. E por constatar que em tantas coisas você já melhorou.
Mas o caminho é longo e, na maioria das vezes, sem atalhos. E há lobos enganadores que prometem o que não existe.
Mas é preciso prosseguir, sempre alerta e sem medo.
Deixar-se guiar somente por uma força maior, a intuição.
Assim seguiremos com a cara mais limpa, na busca da perfeição.

Expressão

O que pinto? E para quê?
Minha pintura, não a faço: se extravasa de mim. Não há intenção, não participa a porção volitiva, só existe a emoção que escorre livremente. É como uma harmonização, uma tentativa de equilíbrio. Quando o que me habita atinge um limiar, é preciso exprimir. Não sei o que pinto, apenas descubro o que se formou na tela a partir de meus movimentos, depois de terminada, olhando-a e, principalmente, sentindo-a. Por vezes está inacabada e horas ou dias depois um novo traço a completa e pode modificá-la completamente.
A minha linguagem é através de imagens e são imagens livres, soltas, ilimitadas, capazes de traduzir uma variedade de sentimentos e serem captadas, entendidas, visualizadas ou mesmo intuídas por qualquer observador.
Nem sempre pode ser compreendida no plano cognitivo por aquele que impressiona. Pode causar espanto, apreensão, medo; pode maravilhar, emocionar, deslumbrar, entristecer, causar náuseas: sensibilizar. Algumas vezes provoca um incômodo, atiça, tenta mobilizar. Instiga sempre. O fato que é que atinge; às vezes de forma indelével, outras vezes demolidora.
O que pinto já nasce pronto, é como uma pictografia. Mas quem se expressa não são sempre outros egos, podem ser subpersonalidades minhas, tantas que nem eu conheço ainda e que necessitam de expressão.
Pintar é para mim terapêutico porque me permite integrar meus eus sem dizer palavra. Na verdade, substitui a palavra. Busco o silêncio.
Depois que termino um quadro, passo por ele e ele me chama para que o olhe profundamente. Muitas vezes preciso de tempo, de várias miradas, de fixá-lo ou de passar através dele e estar em outro lugar, de me expandir caindo nos abismos que retrata ou levitar envolta em cores suaves ou mesmo ser tomada e girada e arremessada longe, depois de ser tragada pelos redemoinhos de cores quentes. O fato é que há um convite para interagir com as imagens e ser transformada por elas. E também visualizo rostos e formas esboçadas.
Acredito que acontece assim com todos que pintam e com todos que são impressionados por uma obra de arte. O que difere é a profundidade da comunicação.
Sei que nesta forma de comunicação subliminar ocorre o mesmo que observamos em relação a pedras e cristais, alguns livros, lugares especiais: não somos nós que os escolhemos, eles nos escolhem. E assim também com animais de estimação, adereços, músicas e, porque não, com amigos e filhos adotivos? A propaganda se utiliza disto e todos nós vivenciamos todo tempo esta forma de interação.
Não é necessário traduzir ao nível cognitivo para ser atingido por uma imagem. Felizmente, a interação entre as pessoas ultrapassa o sentido das palavras, o olhar se aprofunda além do que se vê objetivamente e o corpo se expressa mais do que pretende, com os gestos. Somos seres ilimitados, mesmo quando não conseguimos perceber.
A arte é uma linguagem que expõe o artista, que mostra quem ele é e o que pretende nesta existência ou mesmo que serve de veículo para retratar conteúdos latentes de vivências passadas fazendo pressão na sua consciência. Daí sua função terapêutica.
Um quadro costuma escolher seu dono e não o contrário. É engraçado numa exposição alguém declarar que precisa adquirir aquela obra que sente como se já fosse sua. É que foi atingido em cheio por ela, houve um reconhecimento.
Ainda tenho apego pelos meus quadros e não consigo vendê-los, talvez porque ainda não cumpriram sua função. Não basta terem exonerado meus conteúdos, ainda tenho que captá-los, entender alguns decifrando-os ou apenas intuindo outros. Hoje ainda são meus e ficarão comigo como filhos, só que me preparando e não o contrário, então poderei soltá-los para que encontrem e elejam seus outros donos com quem passarão a interagir e transformar.
É bom pintar, brincar a sério com as cores, sentir nos dedos as texturas das tintas, o relevo da tela, o cheiro da mistura de cores e o assombro pelas imagens que se formam. É assim na vida quando o prazer é mergulhar completamente, se aprofundar nas vivências, misturar-se com os semelhantes e enxergar cada vez mais claro o que está por trás das evidências.

Atenção

Viver e ter consciência plena de tudo. Quem seria capaz deste exercício de ser aqui e agora? Deve-se ter certeza de não deixar passar nenhum detalhe. Tudo é importante enquanto se caminha pela vida e sempre há a escolha. Optar pelo caminho certo nem sempre é fácil, já que escolha certa ou errada é pura convenção. Nada existe além do caminhar. E o que importa é a escolha, apenas isso. Todos os rumos são formas de evoluir e aprendemos com os erros. E se fazemos o caminho ao caminhar, o mais importante é sentir os pés no chão, olhar bem para os lados, perceber os perfumes do lugar, prestar atenção às pessoas e ao que nos cerca e, sobretudo, olhar-se. Completamente.

No Stress

(Paródia da música “Devagar, Devagarinho”, de Eraldo Divagar, cantada por Martinho da Vila)


Bem devagar, bem devagar,
Bem devagar, bem devagar,
Devagarinho...

É desse modo que a gente chega lá,
Se você não acredita até pode se estrepar.
Não vá na onda pra você não se afogar,
O stress então lhe pega, não adianta reclamar.

Bem devagar, bem devagar,
Bem devagar, bem devagar,
Devagarinho...

Nesta vida o que vale é escolher,
Atenção o tempo todo ou cê vai enlouquecer...
Precisamos abrir mão do que é penoso
Pra viver o que é gostoso... Isso já dá pra fazer.

O trabalho só vale pelo prazer,
Competir pelo sucesso não dá para entender...
Ganha hoje e amanhã perde de novo,
Botem isto na cabeça. Vamos relaxar, meu povo!

Bem devagar, bem devagar,
Bem devagar, bem devagar,
Devagarinho...

O amor deve comandar a gente,
Confiança é o que ajuda pra sempre seguir em frente.
Com coragem e muita dedicação
Todo mundo chega junto, desse jeito é que é bom...

Bem devagar, bem devagar,
Bem devagar, bem devagar,
Devagarinho...

Delírios

Chove. É madrugada. Todos na casa dormem. Acordo de um período breve de sono vencida pelo calor excessivo. Ainda sonolenta abro a janela. É abafado dentro de casa. Através da grade observo, do outro lado da rua, a casa de jardim amplo e de repente sou jogada de encontro à minha alma. Olhamo-nos, separadas pelos triângulos de ferro que “protegem” minha casa. Surpreendo-me e me percorre o corpo uma corrente elétrica concomitante ao ruído supersônico que, neste estado ampliado, percebo no mesmo instante em que vislumbro morcegos cruzando o ar entre as árvores copadas. As frestas da grade, com a janela semi-aberta, teriam deixado penetrar um morcego, assim como olhar a noite quieta com a chuva fina caindo e refrescando os corpos do intenso calor não me salvou do contato terrível comigo mesma.
Pensei em como me excitou supor que, entrando no quarto naquela noite, o morcego viria direto ao meu pescoço e sugaria meu sangue, me aliviando do excesso talvez de uma vida, equilibrando meus humores tal qual a chuva que cai agora mais suave e fria e arrefece o calor de tantos que, vermelhos de raiva, destilam seu ódio há tantos dias, numa logorréia também supersônica que agride meus ouvidos, que consegue sujar minha aura.
Terrível encontro porque, na madrugada quieta, sem gente na rua, o vazio das pessoas, a supremacia das forças da natureza com a chuva agora novamente pesada despencando do céu, me faz ansiar por uma catástrofe que, dizimando muitos milhares de humanos, talvez consiga aliviar o sofrimento do mundo.
E o ruído dos morcegos nesta noite também guiará meu caminho quando novamente tentar voltar a dormir. Porque, excitada pelo pensamento de que a tragédia, a morte, é a única solução para o impasse deste atual aprisionamento da minha alma, é provável me chocar com a culpa e acabar num sonho erótico com vampiros em noite de temporal.

Sentir/Pensar

Saí pelo mundo olhando com olhos que eram diferentes.
Diferentes porque viam com a abrangência das crianças.
Olhos que apenas sabem captar o que o mundo lhes oferece.
Crianças não pensam no porquê das flores serem como são,
Elas simplesmente aceitam aquilo que vêem.

Pensar é arranjar justificativas para si mesmo.
Ser não carece de explicações,
Ser é tão simples que não se consegue imaginar.

Falar - será assim tão importante?
Será essencial exprimir-se desta forma?
Busco a mudez, tão maravilhosa mudez, que me permite sonhar.
Pobres ouvidos, tão desprotegidos diante destas metralhadoras de palavras!
Fujo dos sons,
Fujo destas revoadas de palavras completamente dispensáveis.

Rotina (Por Cada Um de Nós)

Seis horas da manhã. Segunda-feira. Acorda, filha! Está na hora da escola. Anda. Levanta. Mamãe vai se atrasar. Hoje o dia vai ser horrível! Não me atrase, por favor, diz a mãe em súplica quase. Aí, meio atônita, olhinhos inchados, meio apagadinhos, a gordinha fica sentada na cama tentando se apoiar nas cobertas, travesseiro na mão. Nenhum bom dia. Beijo e abraço, então, nem se fala! Hoje é segunda-feira. Arrasta-se até o banheiro, nem se olha no espelho. Corre pra fazer xixi. Boceja cheia de sono. Dos sonhos, não se lembra. Foi cortada, logo cedo. A mãe grita do lado de fora: Anda, menina! Troque logo o uniforme! Daqui a pouco volta ela trôpega. A mãe, feito barata tonta, movimenta-se pela casa recolhendo as mochilas, jogando as roupas usadas na máquina; bebendo leite desnatado em goles rápidos, não sente o sabor do que bebe. Não sossega. Na cabeça, o dia que vai ter se desenrola apressado. A garota não consegue, na mesa, tomar o café da manhã, tenta engolir mas não desce, seu pequeno estômago ainda não acordou. Aquela que se diz mãe, desabalada pela casa, escreve bilhete para a empregada, atende à ligação matutina da mãe dela que se preocupa com seu ritmo acelerado, olha na mesa da sala as contas que o marido, ao sair, esqueceu, e xinga porque então pagarão multa, recolhe seus papéis numa pasta transparente que agarra debaixo dos braços e impede que abrace a filha, coitadinha, que é subitamente retirada do transe em frente à xícara do café com leite pela buzina insistente do ônibus escolar àquela hora da manhã. As duas, mãe e filha, mal se olham nesta corrida desabalada para iniciar um novo dia de uma nova semana que vai correr assim, sem significado, por muito tempo ainda.

Outra casa, outra menina dorme relaxada. Na cozinha, radinho de pilha tocando baixinho, a mulher se movimenta devagar. Já está acordada há um tempo, já olhou no espelho e ajeitou o cabelo, enquanto sonhava ou se lembrava do sonho que teve hoje. O rosto, já lavado, com o perfume de rosas do seu sabonete favorito. No fogão a água já está fervendo e, delicadamente, é derramada por ela sobre as encostas de pó de café que deslizam pelo coador enquanto exalam aquele cheiro gostoso que enche a casa e chega até o quarto da menina, talvez virginiana, que abre os olhinhos e sorri animada enquanto se espreguiça, solta um gritinho e se levanta, feliz. Na cozinha se encontram mãe e filha, se abraçam, se olham, falam pouco, não há muito que falar, as atitudes são plenas de significados. Tomam juntas o café, o pai já saiu mais cedo, foi levado à porta pela esposa que se despediu com um abraço e um beijo demorado de quem vai sentir saudade pelo resto do dia. A escola é só mais tarde. Na mesa, a menina brinca fazendo bichinhos com o farelo do pão comprado um pouco antes na padaria. Falam sobre o dia na escola, sobre os colegas, os medos, as provas, os professores; a mãe conta como era no seu tempo e promete fazer uma comida especial para o almoço. Elas comem com prazer, saboreando tudo; estão ali, somente ali, o futuro ainda não chegou. Tomam café. A menina então toma banho, até ensaia uma música debaixo da água do chuveiro, a sua roupinha espera por ela no cabide do banheiro, veste-se devagar, chama a mãe para pentear seus cabelos e, no espelho, coloca os enfeitezinhos preferidos na cabeça. Saem juntas, mãos dadas, às vezes se solta e corre livre, olhada de perto pela mãe que vai atrás, rumo à escola. Pegam sol, vêem pessoas, conversam enquanto caminham. No pátio se despedem com beijos e sorrisos. Logo estarão outra vez juntas para celebrar esta coisa especial que pode ser a vida.

Nossa vida é feita de escolhas que a todo momento somos chamados a fazer. São duas história diferentes de pessoas parecidas. As meninas estudam no mesmo colégio, as casas ficam em bairros próximos. Mas os destinos são tão diversos em função de opções tão diferentes. Lá na frente veremos que ambas as mães chegarão ao mesmo lugar quase. Tanta diferença na qualidade dos dias não significará nada em termos de progresso material e, em termos concretos, as expectativas dos filhos serão as mesmas para as duas famílias, só que a qualidade da vida sacrificada da mãe executiva em função da esperada conquista do poder pessoal é ruim. Sua filha será emocionalmente defasada, de nada adiantarão os bens que conseguiu adquirir para ela, as melhores escolas não a capacitarão para ter um destino mais feliz: ela não se sentiu amparada, estimulada, seu coração não pôde estar pleno do amor materno. Nem a mãe, na corrida incessante, pôde manifestar o poder pessoal, pois ele se faz sentir de forma mais fácil quando se realiza o que se quer, quando se escolhe, movido pela própria percepção do desejo, pela motivação maior. A mãe que entendeu o seu papel de harmonizar o lar, orientar os filhos, cuidar daqueles que ama, exerceu seu poder pessoal e esteve preparada para, mais tarde, desenvolver sua vida profissional alicerçada pelo conforto emocional de quem faz o que é preciso, que traz beleza e significado para tudo com que se envolve.

Ser mãe, esposa, dona de casa pode ser tão gratificante, especial e importante quanto ter uma carreira. Mas se você é capaz de trabalhar fora de casa, vivendo todos os dias o seu momento presente com envolvimento total com as pessoas e com o que faz, sem sofrer a atração fatal das expectativas do futuro ou as amarras das teias do passado, poderá ser igualmente feliz. O que faz a diferença não é o que se faz, mas como se faz, e se isto corresponde ao seu real desejo e não à expectativa dos outros.

Menopausa

(Paródia da música infantil “Terezinha de Jesus”)


Menopausa, menopausa,
não demore pra passar...
Se ela fica por mais tempo
acho que eu vou pirar.

O primeiro foi o calor,
castigava sem cessar,
vinha numa onda quente
e a cabeça a zonzear.

Num segundo esfriava
e eu tremia, sem entender...
Cobre corpo, descobre corpo
a noite toda... dormir pra quê?

E em terceiro foi pior,
isto então não quero mesmo,
ressecada para sempre...
Desse jeito eu não mereço

Mas já sei como se faz
e agora é pra valer:
exercícios, meditação
e cuidar do que comer.

Claro, a natureza é sábia...
Precisamos reservar
os remédios e outras coisas
só pra quem não melhorar.

Equilíbrio, harmonia,
calma e ponderação
muito ajudam nesta fase.
Acreditem, é muito bom!

A Crise

Lusco-fusco na lareira
Quase fria, apagada,
Sem tostão na algibeira
Vou seguindo minha estrada.

Já fui rico, quem diria,
E palácios freqüentei.
Hoje durmo na sarjeta
Sem contar com mais ninguém.

Esta vida é assim mesmo,
Quem espera, leva um não.
Sê feliz, conta contigo,
Todo resto é ilusão.

Desconstrução

Desconstrução. Acordei com esta palavra na cabeça. Acho que já me desconstruí em vários aspectos e há, ainda, outros tantos a serem postos abaixo.
Fico me imaginando como uma construção em que, aos poucos, seriam retiradas as telhas e buracos no teto surgiriam deixando o sol entrar. E ele iria iluminar os cantos mais escuros do ser, desvendando mistérios e desnudando a alma; mas os mesmos buracos terminariam com a proteção de um teto espesso, talvez milenar.
Desconstruindo as paredes/limites, estenderia os campos de atuação, alargando a consciência e permitindo a expansão em todos os sentidos. Algumas paredes, já infiltradas pela água/emoção, cairiam sem resistência, esfarelando, desintegrando, úmidas, caindo sem barulho. Outras, secas que se fortaleceram ao longo do tempo, acostumadas ao sol forte que as cobria diariamente, resistiriam mais, sendo necessários golpes mais duros da vida para demoli-las, não raro fazendo estrondos ao despencarem.
E, sem teto, sem paredes/limites, mais vulnerável, sentindo frio, me restariam os alicerces e a base, o solo.
Entretanto, seria preciso também desconstruir a base. A base é sólida, os alicerces, profundos, enterrados, com ferros entrelaçados num emaranhado de formas de ser/sentir que já não devem subsistir.
Será que um processo comum de demolição é ineficaz? Será preciso um cataclismo que possa varrer de vez as partes que ainda resistem?
Enquanto o cataclismo não vem, o prédio/eu fica em ruínas. Adoro ruínas. É sinal da ação do tempo, de resistência, de fé na vida. Um prédio em ruínas, bem velho, marcado pela passagem do tempo, me fascina, sempre me atraiu. Adoro notar o limo verde nas paredes, as teias de aranha nos telhados, os chapéus de sapos nos jardins. Tudo isto marca o que tenta ser imutável e mesmo assim não é, não consegue ser, porque o fluir da vida, o tempo, tudo transforma.
E a desconstrução dá espaço para o novo. É o porvir da pessoa, a expectativa, o grande salto. Só que, para ser concretizado, é preciso ir lá embaixo, demolir tudo, descer ao reino dos infernos, desnudar-se, sair do castelo guardado a sete chaves, baixar as pontes levadiças e permitir a chegada dos arautos que trazem as notícias dos novos tempos/formas de ser.
Meu despertar de hoje, pensando em desconstrução, talvez me desperte para alguma coisa. Quantos novos dias devem chegar com promessas de ruína para me sacudirem e tirarem do curso calmo dos dias de mediocridade?

Preciosa

Hoje, o que escrever a você,
se de fato estive todo tempo por perto,
vivendo das lembranças e do desejo de logo renová-las?

Dizer que amo você, mais uma vez e mais outra?
Não, eu gostaria de mostrar isto de outras maneiras.
Talvez oferecendo-lhe o que de mais belo encontrasse pelo mundo...
Sair garimpando preciosidades só para orgulhosa exibi-las para você um dia.

Mas, para que você iria querer olhá-las
se já todos os dias vê a mais bela de todas
quando se mira no espelho?

Eu estou tão cansada...

Eu estou tão cansada das suas desculpas esfarrapadas; das suas longas noitadas…
E de ainda me acordar quando volta pra casa, de madrugada, dizendo que só estava trabalhando;
da sua constante ausência quando ao meu lado, na sala, enfia a cara no jornal pra não me ver;
das suas saídas com os amigos nos fins-de-semana sem cor, em que me esquece sozinha;
de reclamar minha presença nos momentos de todas as suas mazelas;
de ignorar e faltar aos convites de reuniões com nossos amigos, enquanto impõe minha presença contrariada nos compromissos sociais do seu trabalho;
da sua boca aberta no riso frouxo diante da tevê quando tento lhe falar a sério sobre nós;
dos seus gritos histéricos, se eu proponho mudanças em nossa vida, quando afirma que está tudo bem e que eu complico;
das suas decisões sobre tudo quando eu espero parceria;
do seu jeito de amar sempre sozinho e eu, mesmo precisando compartilhar o meu desejo, ceder à sua sedução outra vez.
Estou tão cansada, tão cansada, que é melhor virar a página.

E continuar escrevendo esta longa carta de amor pra você.

Quero Minhas Estatísticas!

Quero minhas estatísticas
e eu não faço por menos.
Se você não gosta delas,
deixa pra nós que queremos.

Estatísticas não servem pra nada?
Quem foi que te enganou?
Dão a graça e trazem vida,
mostram quem te visitou.

Perdão

Perdoar? Que nada! Eu lá sou disso?
Guardo a mágoa até o fim e ainda me comprazo em recordá-la todos os dias.
Aliás, faço questão de deixar bem claro, para quem me causou problema no passado que, por qualquer motivo, eu vou desfiar todo o rosário de queixas outra vez. É só me provocar com alguma coisa, qualquer coisa que tenha relação com o acontecido, por ínfima que seja ou mesmo que o fato já tenha ocorrido há mais de 10 anos.
Adoro rememorar e resmungar sozinha. E trago a emoção sempre viva, total. Então fico vermelha, faço caras e bocas e até berro tudo de novo.
Mas o pior é quando me calo, fico de cara feia e trombuda por vários dias, até quando estou sozinha e muito longe do meu “algoz”. Quase já tive uma paralisia facial por isto. Só não aconteceu de verdade porque, em geral, expresso logo a minha raiva, não sou de levar desaforo pra casa.
É, eu sou assim mesmo: às vezes inflamável, briguenta; outras vezes ressentida, me mordo por dentro, com jeito de ofendida e eternamente magoada. Por tudo isto é que eu não perdôo. E esta característica me confere até uma certa distinção: eu não passo adiante, fico empacada mesmo, como se isso representasse uma força em mim. Mas que nada! Só se for força do hábito: de ser chata, turrona e burra mesmo.
Porque perdoar é seguir sem deixar lastros, sem carregar fardos desnecessários, mais leve, fluindo sempre.
Puxa! Então, pensando bem, acabo concluindo que perdoar pode ser mais fácil do que a gente pensa, sabe? Pelo menos nas questões mais corriqueiras. Afinal, vamos deixar toda aquela história de ter que ceder, aceitar os fatos e os outros da forma como são e o julgamento nas mãos da Vida apenas para o que for realmente relevante.
Eu acho que vou tentar.
E você? Quer fazer o mesmo?

Amigo de Todas as Horas

Todos nós temos amigos que compartilham momentos bons, nos estimulam, nos permitem aprofundar no autoconhecimento e podem nos ajudar quando vivemos nossas dificuldades, dores ou perdas.
Entretanto, há também um amigo de todas as horas presente dentro de nós, que nos ampara, esclarece, dá coragem, força, nos corrige e propõe transformações. Ele nos fala às vezes diretamente e outras vezes de forma tão sutil que deixamos escapar sua mensagem. Mas com freqüência teimamos e ele acaba precisando nos repreender, gerando acontecimentos em nossa vida que nos atiram direto no seu colo para que possamos enxergá-lo e ouvi-lo. É o nosso Eu Superior, que não critica nem julga.
E sabe um jeito infalível de conversar com ele? É só escrever para você mesmo. Não precisa achar que sabe escrever, ele nem liga se você escreve direitinho ou não, ele vai entender de qualquer forma e se você se arriscar, decerto vai gostar, por causa da luz que vai clarear sua mente e, conseqüentemente, sua vida. Você poderá até se viciar na escrita...
Daí, com o tempo passando, você escrevendo, aos poucos sabendo expressar para você mesmo o que sente, acabará tendo a necessidade de passar seu aprendizado para o mundo e, quem sabe, dentro de você mora um escritor em potencial que pode estar adormecido. Voltando-se para você mesmo encontrará paisagens inimagináveis, atalhos para a felicidade, soluções mirabolantes que já existiam e você ainda não havia descoberto. E, neste caminho, poderão surgir “belezas” que você gostará de compartilhar aqui, no “Duelos Literários”.
Escrever é libertador, alivia e até pode curar.
Então... respire, se inspire, se solte e tecle pra nós.

Esperança

Sobrevôo os destroços de um mundo que,
imagem e conseqüência do que somos,
agride e inferniza os dias
dos que ainda sentem agitar dentro de si
lembranças boas
soterradas na lama
de um presente inglório
de viver, compulsivamente,
o irrelevante.

Busco sementes portadoras do novo paradigma...
Garimpo, em meio à alienação,
seres que guardam,
no recôndito de sua mais profunda gruta existencial,
a compreensão inequívoca
de pertencer ao todo,
ser ligado em teia
a tudo que é material ou imaterial.

Eles existem,
se insinuam,
quase desabrocham
e esperam por nós
para recuperar o planeta
e o próprio homem.

Espadas

Espadas?
Nascidas mesmo para lutar ou simplesmente representar o reino?
Até quando lutarão entre si?
Até que se dêem conta de sua verdadeira vocação e se permitam transformar em ondulantes fitas coloridas.
Decerto diferentes entre si, mas que juntas possam formar um lindo arranjo oferecido e dedicado à memória do dono das espadas.

Espadas (Adir Vieira)

Eram oito as espadas. Habitavam a mesma prateleira. De feitios diversos, com ornamentos diferenciados, ali estavam com o único propósito de guerrear e defender.
A primeira chegou em tempos plácidos, foi cuidadosamente escolhida. A princípio bastaria só ela. Como não havia guerras, sua finalidade era agradar, servir de exibição e atender aos desejos de posse do seu dono. Assim passou pela vida, sendo aquela cujo trabalho era desdobrar caminhos, às vezes para satisfação própria. Foi lutar, quando raramente era necessário, em local destacado, aparecendo para as outras como sendo atarefada e sofrendo com o seu papel. Tinha o seu valor intrínseco de ser a preferida e de nada mais precisava. Se necessitava de um lustre especial para manter seus dois gumes altaneiros, lá estava seu dono pronto a atendê-la.
A segunda também chegou em tempos calmos, embora comprada em oferta de ocasião. Por um longo tempo ficou sem a oportunidade de guerrear, até que, surgindo tempos bravios, lembrou do seu papel e iniciou estudos e mais estudos no seu aperfeiçoamento. Não tinha dois gumes como a primeira, mas mais ciente do seu papel, necessitava exibir a melhor performance pelas duas. Foi assim pela vida, até encontrar um espadachim que a dominasse e a impedisse de exercer seu papel tão bem aprimorado.
A terceira chegou para compor o quadro. Afinal, a primeira tinha dois gumes e era toda trabalhada, uma peça de raro valor, talhada em manhas e artimanhas; a segunda, especial na forma com que se lançava na luta, carecia de uma terceira, não tão bem facetada como a primeira, mas que fosse mais atuante (mesmo com apenas um gume), pois os mares já estavam bravios. Passou pela vida fiel ao seu propósito e, principalmente, fiel ao que lhe pediu seu dono. Se decidia ir por caminhos mais fáceis na luta, voltava a se conduzir da forma com que o seu dono pedia, somente para lhe ser fiel. Guerreou até o fim pelo simples prazer da luta, pelo simples prazer de defender direitos e defeitos do seu dono e por muito tempo buscou, fora do seu domínio, outros campos para guerrear. Mostrar sua fidelidade ao dono era o seu mais crucial desejo.
A quarta chegou em momentos de vez em quando bravios, mas relutou em ser espada. Era plácida, quieta, alheia a tudo e não queria ser reconhecida como uma espada. Sua forma despojada, chata e larga dava trabalho ao espadachim, como a lembrá-lo a todo momento que não era hora de lutar. Mas a terceira, que reinou junto com as duas primeiras por um longo período, a forçava a exercer o seu papel, o que era mais do que compreensível. Assim, aos poucos, foi desenvolvendo sua condição de espada. Seu dono não necessitava de sua defesa, tinha as outras três, e assim ela se aquietava no seu canto, exibindo em outros momentos a revolta natural por não lutar. Assim viveu, tentando entender o porquê da luta, pois era tão penoso e trabalhoso... Se pudesse escolher ia se enfeitar e ornamentar o armário e as outras. Ensinaria seus dengos e suas peripécias no ar, nos torneios lúdicos.
Mas aí, então, chegou a quinta, logo em seguida, de súbito. Não importava se os mares estavam bravios ou não. Compreendeu que, no monte, algo corria sem propósito e com moradia bem próxima da quarta, de pronto percebeu - pois era muito perspicaz - que a quarta era uma inútil e que sem a presença dela próxima, todas deixariam de cumprir seu papel na defesa de seu dono. Tinha uma imponência própria, brilhava e chamava muito mais a atenção quando exibida. Negava-se a ter outro papel que não o de lutar, o de lutar e o de lutar. Seu dono também percebeu que era a mais observada nos torneios e a ela destinou as melhores batalhas, as lutas mais difíceis, aquelas que - ele tinha certeza - nenhuma das outras enfrentaria melhor. E, de batalha em batalha, sua altivez nunca era vencida. Assim passou a vida: guerreando, vencendo e perdendo para ganhar de novo.
A sexta veio num tempo mais adiante. Altiva e reticente, de forma diferente das demais, que a estranharam no monte, custando a reconhecê-la como parte do acervo. Veio em tempos mais que bravios, mas discordando da maneira quase parecida de todas guerrearem. Tentou mostrar laçadas diferentes, movimentos únicos e especiais, mas não encontrou seguidoras e rumou para outros territórios, sem, contudo, deixar de cumprir seu papel na defesa do seu dono. Assim viveu, cônscia do seu acerto por desse jeito se conduzir.
A sétima, ah, a sétima... Essa chegou quando seu dono precisava escolher uma em primeiro plano. Estava envelhecendo em mares turbulentos e as outras espadas já apresentavam ranhuras e amassados que dificultavam a luta. Lutavam entre elas com afinco para se fazer ideal perante o dono. Chegou a sétima e identificou o desejo do seu dono, de pronto. Não titubeou. Deu provas de sua capacidade de defesa, não só do seu dono, mas cuidou para que as outras espadas fossem poupadas das lutas mais árduas e difíceis. Não foi difícil para o monte se aperceber do seu papel. Umas lutaram em se fazer a escolhida, outras aceitaram com satisfação sua proteção, outras fingiram estar atuantes para não desagradar ao dono que, notando sua perspicácia, elegeu-a sua favorita. Afinal, nunca nenhuma das outras espadas captou a maneira com que ele queria a luta, como ela, a sétima. Assim viveu até o fim: no monte, com o monte e para o monte.
Mas seu dono, não satisfeito com o acervo, passados alguns anos, aceitou de presente uma nova espada. Tinha o objetivo de renovar o monte, era brilhante, com dois gumes afiadíssimos, pequena, mas carecia de ensinamentos especiais de todo o acervo para cumprir seu papel de espada. Veio em tempos menos bravios; com tanta espada pronta a defender seu dono, caminhou em terras outras para adquirir novos conhecimentos. Verificou que a luta deveria ser silente, sem estardalhaços, os golpes deveriam ser imperceptíveis para atingir o atacado e, mesmo sendo a última do acervo, tentou mostrar seus achados ao monte. No entanto, todas, ao longo da vida, já haviam incorporado atitudes próprias, calcadas na vivência da defesa particular do seu dono. Assim, recusaram mudar, mais uma vez.
Hoje, seu dono não mais existe e não há necessidade de lutas. Como deixar de ser quem se tornaram? Acho que, por isso, o monte luta entre si. Mas até quando?

Roda da Vida

Ando por terreno íngreme, ladeando um horrível abismo.
Sei o que me aguarda caso perca a atenção um só instante.
E resisto e avanço.
Embora, muitas vezes, as intempéries se abatam sobre mim.
Ignoro o perigo que corro, contribuindo para que seja ainda mais difícil meu caminhar.
E à medida que ando não me deixando sugar pelo abismo que seria a única certeza
fortaleço as pernas que não vergam pelo cansaço e mais ainda os nervos que se fazem de aço
para suportar todas as mudanças, todos os sustos, todas as agruras que fazem parte deste meu destino.
Um dia, quando ultrapassar este trecho mais puxado, tão cheio de armadilhas
que ameaçam endurecer meu coração e turvar minha mente lúcida,
poderei ora caminhar com passos firmes,
às vezes em passadas leves quase esvoaçantes
ou ainda saltar pela alegria de poder perceber a paisagem então tranqüila, bela e idílica
ou até mesmo parar, descansando à beira de um lago de águas profundas onde, certamente,
repousarão as dores, as mágoas, e incertezas do que já passou.
Sonho com esse dia de poder dormir, repousando sobre minha história,
tecendo os fios de uma nova trama,
uma outra rede de intrigas
em que me perderei num futuro próximo.

A Pipa

Sobe, levada pelo vento, dançando qual serpente nos ares. Sorri toda colorida na longa rabiola desenhando movimentos graciosos, enquanto os ombros largos de bambu impõem altivez e avançam cortando os céus. Leve e flexível rodopia e vai cada vez mais alto e mais alto. (É como aquele momento em que saímos de nós e temos uma idéia luminosa.)
Outra vez solta-se, mergulha no abismo. Então, sobe de novo, mudando a direção. E dança e dança e quase se cansa dos vôos livres. Aí precisa se envolver com outras, ensaiando trajetos que faz ou não faz, só de brincadeira, atraindo as de outras cores e formatos e fugindo rápida quando aceitam o embate.
E, finalmente, se embolam numa briga de galos de cores quentes, engalfinhando-se, sob o efeito de movimentos irados e precisos dos moleques em férias. Até que uma delas cairá desfalecida, às vezes degolada, seguida pelos olhares ávidos dos meninos da rua. Será então apanhada, socorrida, recuperada.
E, agora, já conhecendo as manhas dos céus e dos meninos, mais apta para “os cruzas”, depois de refeita com outras cores (mais fortes), será a estrela dos céus das férias. Terá um outro destino. Só depois de ter-se deixado cuidar.

Espera

Um dia meu sol irá brilhar, vou emergir de dentro de mim, rasgando meu peito talvez em dor. Sei que vou chorar, mas será igual ao choro de nascer, a primeira vez que vou respirar o meu ar. Será lindo, já sinto meus olhos úmidos desse momento. Tenho comigo, às vezes, a sensação de liberdade da borboleta deixando o casulo, voando, percebendo a beleza das flores, sentindo de cada uma o perfume, extasiada por tantas impressões aos sentidos. Agora, quando quiser, posso ter comigo esta sensação, exercitando esta expansão de consciência. Um dia ela estará totalmente alargada, meus canais abertos, integrada naquilo que sou realmente. Por enquanto, continuo alçando meus vôos tímidos.

Minha Alma

A minha é branca. Foi uma desconhecida para mim por muitos anos.
Na infância não tinha dela consciência, embora dominasse meus dias. Sim, porque quando bebê - dizia minha mãe - eu era tão quieta sempre que ela repetidas vezes mexia comigo no berço para saber se eu estava viva. Menina ainda, era muito esquisita e diferente das outras, tendo como brincadeira favorita ficar horas e horas no balanço de casa sozinha cantando ou estirada no sofá da varanda quieta sonhando. Assim, antes dos 6 anos, quando entrei para a escola, éramos eu e ela somente e eu vivia obedecendo ao seu comando. Aí, ao entrar em contato com o mundo - no meu caso se restringia ao colégio - nos afastamos. Acho que passei a viver por minha conta e então me danei. Foram anos difíceis, precisava enfrentar os dias sem sua ajuda, era insegura, medrosa e meus olhos tremiam diante de qualquer pessoa.
Na adolescência foi pior ainda, eu me achava feia e sem-graça, talvez como a maioria das garotas se sentem neste período. Seguia as regras, embora, por dentro, desejasse subvertê-las; era a tal da minha alma querendo retomar o contato comigo e eu nem me tocava.
Então aconteceu o pior: eu fui seduzida pelo mundo, gostei dos desafios, me empenhei e, na visão corrente, venci. E logo nem sabia mais quem realmente era. Passei a viver em função das expectativas do externo, que sempre me aprovava e queria mais no âmbito profissional, nos estudos, nas relações; maior ainda o distanciamento dela ficou. Vez por outra minha pobre alma se insinuava para mim naqueles momentos em que nos sentimos confusos com o turbilhão dos dias, então me sentia diferente, era bem estranho e convidativo, mas a sensação passava logo.
Até que, felizmente, a maturidade chegou e me tirou a venda dos olhos. Enxerguei como todas aquelas realizações e a própria rotina eram pobres, como era efêmero o contentamento. As dores das perdas que se sucederam, seja na vida profissional, familiar ou nas amizades, me jogaram num novo estado de ser. Fiquei, de repente, cara a cara com ela, a alma. Afastadas por tanto tempo, éramos, de certa forma, desconhecidas, mas não precisei tentar me aproximar dela, sua luz e grandiosidade se estenderam para mim naturalmente. Foi instantâneo o reconhecimento e, desde então, somos uma só. Posso, quase sempre, senti-la comigo, intuir a sua força e expressar o seu amor sempre que consigo escapar do hábito que ainda conservo de tomar a frente, tolinha, quando ainda me mostro controladora, insegura, medrosa, voluntariosa... Espero o dia feliz em que possa ceder e deixar que ela reine absoluta nesta vida, para que finalmente eu consiga apenas ser. Sem fazer, sem querer, sem esperar... só confiar.

Alpendre das Almas

É sábado à noite e me dou conta de que gostaria de ir a algum lugar. Entretanto, meus anseios são novos, penso em um novo point nesta cidade. Não um local onde as baladas convidem a que se formem novos casais efêmeros, não qualquer galpão barulhento onde a música alta, dançante, com teor que estimula a sexualidade barata reinasse, nem uma requintada casa com música de fundo suave, onde as pessoas se embebedam para resistir a mais uma noite de solidão acompanhada. Não, gostaria de encontrar um local amplo, aberto e suspenso, se possível distante do burburinho da cidade, onde haveria pessoas totalmente lúcidas, numa conjunção perfeita que nos remetesse aos desejos do espírito - este que também nos proporciona a visão do alto, sem fronteiras, que nos expande e faz voltar para a fonte interior. Teria um nome, esse lugar, que o identificasse e chamasse pessoas com a mesma vocação e necessidade que tenho agora: Alpendre das Almas. Sinto que são muitas, estas pessoas, embora ainda não se revelem espontaneamente, talvez por medo, falta de costume ou desconhecimento dos seus semelhantes. Seriam atraídas para lá, em iluminadas noites de sábado (sabah), pessoas que buscam desenvolver a profundidade, que querem alimento para o espírito, que necessitam trocar num plano mais elevado, que se ocupam, no cotidiano, de questões mais fundamentais, que têm personalidade diferenciada e precisam de alguém junto, não por estarem vazios (de si), mas para compartilhar sua riqueza. Este lugar seria, decerto, silencioso; entretanto, a energia da alegria gerada iria se estender quase imperceptível para os quarteirões vizinhos, clareando vidas, despertando belezas. Então, na madrugada, quase raiando o dia, estes boêmios de oitava superior voltariam aos seus lares, totalmente conscientes, com as mentes expandidas, plenos, energizados, de coração leve e aptos a viver (em suas relações no trabalho, com a família, com os amigos) uma nova semana sob a regência exclusiva de suas almas.

Urgência

Não consigo definir exatamente como me sinto, mas é uma angústia, uma carência, uma vontade de parar tudo talvez para refletir, talvez, não sei, para parar tão-somente. Eu me sinto exausta e carente. Necessitada de alguém que compreenda este meu estado, esta minha angústia. Carente de sentar e conversar por horas a fio com uma pessoa que queira trocar comigo. Alguém para quem eu possa me queixar, falar das minhas fraquezas, dúvidas, indecisões e indefinições. Mas, ultimamente, todos que me procuram estabelecem comigo um contato que “precisa” ter mão única. Querem de mim respostas que muitas vezes não posso dar, buscam em mim um apoio que nem sempre estou preparada para lhes dar, esperam soluções mirabolantes, poções mágicas, pozinhos encantados que facilitem os seus relacionamentos, que os tornem fortes e preparados para uma vida de dificuldades que eles próprios geraram; e eu, que não possuo este dom, esta mágica nem para minha própria existência, tenho que pacientemente tratá-los, minimizando sua dor até que possam compreender que a doença, os sintomas, são apenas alertas, sinalizações para que encontrem o seu melhor caminho. Nem sempre eu tenho esta compreensão, nem todos os dias possuo a vontade de exercer este meu trabalho. Há tantos momentos em que necessito de alguém que me tome pelas mãos e me leve por um caminho florido, me sente no colo, enxágüe meus olhos úmidos e consiga apaziguar meu coração aflito.

Revolta

Eu cuspo no mundo, escarro em porções malignas todo o meu ódio e dor.
Preciso destruir, colocar abaixo esta podridão que me circunda.
Tenho nojo e escárnio pelos que me cercam.
Sinto-me enlameada, imersa nos dejetos desta realidade torpe,
Onde os bossais, os cretinos, os oligofrênicos por opção governam.
Conseguirei manter-me acima de toda a imundície,
Quando vez por outra sou tragada por ondas colossais de sujeira?
Só dissociando ou deixando-me catatônica...

Desespero

Tudo está errado, tudo torto, tudo fora do lugar, fora de esquadro. Sinto-me submersa num mar de lama muito preta que me cobre o corpo deixando só a cabeça de fora, enquanto me esforço para mantê-la na superfície, tendo uma opressão no peito, um cansaço por evitar ficar totalmente submersa. Às vezes quase perco as forças, me entrego e deixo soterrar por esta lama negra tão mais densa e pesada que se mar fosse.
Tudo se movimenta no sentido inverso do que gostaria e preciso, tudo oprime. Cerro a mandíbula, mordo o nada, trinco os dentes, berro minha indignação num grito inaudível ao mundo. Estou triste, fechada, sem saída, presa, refém de uma realidade dura, incompreensível, cheia de incoerências, insanidades e dores desnecessárias. Convivo com a loucura, refém do objeto do meu amor e de todo o seu lastro, crias e erros.
Ainda trago vivas na memória as lembranças de um passado feliz, harmonioso, dominado pela ordem, regido por alguém equilibrado, organizado, lógico, coerente, racional. Sinto saudade de um tempo em que havia respeito por horários, sono, trabalho, estudo. Hoje, esbarro em semiloucos perdidos vagando desvairados em busca de um sentido para a própria existência infeliz.

Carência

Vida insana:
algoz de si mesma,
busca desesperada por punição.

Vida confusa:
embaraçada em teia invisível,
tentando escapar do enredo absurdo que se propôs.

Vida penosa:
imersa em sofrimentos autoinflingidos,
bandeira permanente de sua vitimização.

Vida sem nexo:
vazia de objetivos e prazer,
simplesmente cumprindo as horas.

Vida revoltada:
estéril, invejosa e carente,
impondo a todos sua ira e penas.

Vida dolorosa:
estampada no rosto perplexo
diante da possibilidade...
de que a vida seja sentida,
tenha sentido no amor pela vida
que é vivida só com amor e por amor.

Vida sofrida,
apenas cumprida,
exaurida,
carcomida,
suicida,
ou pior:
homicida.

Protejam-me do Amor!

Protejam-me do amor! Cruz credo!
O amor faz mal fazendo bem.
O amor se engana, leva pra cama e tenta derreter o metal,
mas... de quem?
O amor conduz, seduz e reduz.
Egoísta que é, toma tudo,
não vê um palmo além de si.
Matreiro, prega peças mil,
crê ajudar, mas na verdade per si
mostra mesmo o quanto é vil...

Ah! Esse engodo de compartilhar,
essa conversa fiada de dissolver o ego pra gozar...
Tudo balela! Tudo bobagem!
Na verdade amamos é a própria imagem.

Desconjuro! Comigo não!
Solteiro convicto, sem alarde,
disfarço, nos dias de casamento,
fingindo estar junto, sendo de fato covarde
pra me render ao conviver.

Ao invés de um, dois?
Prefiro morrer!

Mas... maldição...
me pego, já consumado o fato,
enredado, à traição,
na armadilha das teias
- invisíveis e absolutas -
do coração.

A Paz

Inquietação, rigidez do corpo, tremor leve, aperto no peito, respiração curta.
Encouraçada pelo medo avanço trôpega e hesitante pela vida.
Apesar das incontáveis experiências semelhantes já vividas,
ainda me deixo envolver pela ameaça do desconhecido
e insisto em negar a possibilidade da paz interior.
Preciso saltar no algodão doce e rosa que a confiança nos oferece sempre,
dançar rodopiando entrelaçada com minha alma,
iluminada pelo facho da luz benfazeja do luminoso;
não duvidar, não tentar controlar,
apenas entregar-me à certeza de que tudo é perfeito
e me deixar levar pelas mãos amorosas da vida.

Armadilha

O êxtase - a dúvida,
Caminho iluminado - o cadafalso,
Inebriantes fantasias - as tristezas,
Você ao meu lado - o salto.

De que vale amar,
Se é loucura,
Se o bem querer
Só traz amargura?

Antes ter por senhor a razão
Do que os motivos vãos do coração
Que só te fazem perder a luz,
Já que a paixão seduz
E no fim te reduz:
A pó.

Simplesmente Ser

Todo ser tem algo que sussurra no fundo si.
Quase nunca se dá conta e segue dividido...
Entrementes, um anjo azul vela, protege e acompanha
aquele que não vê nem pressente,
mas anseia por saber
que motivos se escondem
no mistério do viver.
Até que, enfim,
possa simplesmente ser.

Inocência

Inocência - Visconde de Taunay

Gostei do livro, sobretudo da narrativa de Taunay. E ainda por retratar tão bem a condição da mulher naquela época e o quanto um homem, quando enredado numa paixão, poderia tornar-se frágil. É uma leitura gostosa.

Traição

Eu me perco nas encostas do teu ser.
Deslizo sobre as escarpas ferindo o corpo desnudo.
Agora tenho marcas do contato teu.
Sangro sem cessar quando cravas teus espinhos em meu peito.
E desfaleço nas poças vermelhas, testemunhas do meu vitimizar.
Subo pela tua pele de camaleoa,
crente que irás me esquentar enquanto me sinto gelar pela sua indiferença.
Experimento o desamor teu todos os dias em que te procuro e me repeles.
Choro lágrimas úmidas que contrastam com a secura do teu olhar para mim.
Lamento tê-la conhecido um dia.
Repudio a atração que exerces sobre mim.
Contudo, felicito-me por esta disfarçada dor que carrego comigo.
Dor companheira, hoje, de alguém que um dia,
antes da tua definitiva ausência,
havia deixado de ser sozinha
e se sentia feliz, plena, realizada, poderosa, dona de ti,
sem saber que te sabia somente uma parte -
a parte idealizada, o que de ti queria e hoje reclama.
Só isso.
E um dia, quem sabe,
possa, olhando-te o todo,
compreender-te e aceitar-te,
fazendo de ti, então, o verdadeiro amor,
aquele por inteiro, feito de luz e sombra,
de delícias e de dor.

Ao Filho que Não Nasceu

Você veio.
Eu não te pensei.
Portanto, não te espero.
Nem mesmo sei se te quero.
Te sinto? Será?
Não há tempo.
Você cresce rápido.
E os outros? E a minha vida?
Eu, sempre eu.
E meus medos e inseguranças.
Penso logo, ajo ainda mais rápido.
Encontro cúmplices tão cegos quanto eu.
Que pensam e só pensam.
E não sentem como tu sentes.
Não se responsabilizam.
Apenas anuem e colaboram.
Um dia também eles se darão conta.
Desenho um plano perfeito,
penso que não deixarei marcas.
Ledo engano:
desde o primeiro momento em que te rejeito
sulco em mim gretas profundas.
E quanto mais se avoluma teu desamparo e cresce tua dor,
piores e mais profundas as cicatrizes em mim.
Porque pensando sobre o que não posso,
sobre o que com certeza não terei forças para enfrentar,
não sinto a força que já tu me dás sem nada pedir em troca,
posto que teu sustento já vem contigo.
Teu destino antes combinado será traído por mim.
As marcas em mim pelo desatino
irão além do corpo, certamente.
Porque sentindo, mesmo anestesiada, a dor do teu agonizar,
minha essência será sacudida pelo vendaval da culpa
que deixará marcas profundas no meu corpo, sim,
mas muito menores que aquelas que estarão
no curso de minha existência empobrecida pela tua falta.
Hoje, minha consciência tardia te pede perdão por haver te abortado.

Eu

Era uma vez uma menina de olhos negros, tão viva e leve quanto clara. Vivia sem complicações, fixada nas tarefas, nas coisas concretas, interessada por pessoas e acontecimentos. Era feliz dentro de sua simplicidade. Tinha seus medos, é certo. Medo do que escapasse ao seu controle, medo do irreal e daquilo que, sendo do mundo real, um dia já a tivesse molestado. Assim, procurava se proteger. Vivia em estado de alerta e organizou poderosas defesas ao longo de sua vida, que acabaram por suprimir sua leveza e espontaneidade. Agora estava impedida por grilhões auto-impostos e precisava rompê-los, custasse o que custasse.
Aventurou-se a conhecer o mundo e, principalmente, a si própria. Estudou muitas coisas - teoria não lhe faltava -, mas sempre esbarrava na prática, onde acabava se repetindo sem promover as verdadeiras transformações de que se julgava capaz. Enfim, era uma tola. A descoberta de suas dificuldades para libertar-se de si mesma acabou lhe trazendo um certo ar de tristeza que procurava disfarçar com excesso de movimento, mas lá no fundo sentia-se estagnada. O que fazer, pensava sempre. Sabia, por ouvir dizer, de todos os caminhos possíveis, mas não se aventurava a percorrê-los de fato. Queria não ter dúvidas, queria ser plácida, queria ter na vida o olhar calmo que sua alma detinha. Mas, que nada! Era insegura. Não conseguia ser o que no fundo era.
Um dia a menina de olhos negros pensou na morte. Como seria não mais ser o que era? Seria tão difícil ser estática e fria? Precisava deixar morrer em si o que não mais lhe servia. Tinha que desapegar de tudo, das pessoas, das posses, das habilidades, dos sonhos, das idéias. O que restaria? Olhou no espelho, através dos olhos negros e não encontrou nada. Estava feito. Poderia partir então. Fixou o nada. Despojou-se de toda luz que pensava ter. Era só trevas, só solidão, só desespero. Contraditório. Porque o real é a vacuidade, a escuridão... tudo mais se constitui em ilusão e até a simplicidade da menina era ilusão. Na verdade era um disfarce. Ela era abissal. Tão negra quanto seus olhos. E estava mergulhada numa densidade difícil de vencer. Não queria mudar nada. Sentiu, pela primeira vez, como era triste, complicada e deprimida. E gostou de ver-se pela última vez.

Perfeição

A que nos remete a palavra? É algo de divino, transcendente, inalcançável, talvez. Buscamos atingi-la, ainda que em coisas especiais e pagamos alto preço quando nos distanciamos dela no que é corriqueiro. Se o olhar é estético, conseguimos imaginar o ser perfeito, a obra primorosa, o objeto talhado com perfeição ao concebê-los com a harmonia das formas. Mas, no plano moral, o que seria a perfeição? É inevitável cair no maniqueísmo de julgar bom ou ruim segundo nossos pontos-de-vista. Eu diria que perfeito é o que flui. Não precisamos gastar energia para realizá-lo. É como na natureza, em que os processos se sucedem numa conjunção harmonizada de etapas que culminam num evento singular e absoluto: como o desabrochar das pétalas de rosa com o momento certo de exalar o perfume e a cor exata; e a gota do orvalho que cai da folha e provoca ondas perfeitamente concêntricas na poça d’água de chuva. A palavra certa proferida no exato momento pelo homem sábio. A manobra correta executada pelo motorista ao se defender do incauto no trânsito caótico, evitando o acidente fatal. A decisão acertada do cirurgião num caso difícil que pode salvar uma vida. O gesto significativo do homem amoroso que alivia a dor de uma alma que sofre. O sorriso largo que muda a situação e alivia a tensão numa discussão acalorada. Afinal, o que é perfeito? É algo que devemos perseguir? Talvez não, porque isto também nos dá idéia de futuro. Pensando na palavra per-feito, que nos passa a noção de “durante o fazer”, a perfeição se refere ao momento presente, ao aqui e agora, ao caminho que se desenha durante o caminhar, ao deixar acontecer, ao fluir sem resistência, ao confiar, ao expressar o natural, ao simplesmente ser.

Minha Música

Minha sensibilidade é como uma música. E esta música, nem sempre posso cantá-la. Há momentos em que ela soa livre, densa, melodiosa. Nesta hora, todo meu ser vibra, minha alma se eleva e paira sobre mim.
Mas nem sempre é assim. Às vezes sou desafinada e me incomoda esta expressão incompleta, distorcida, incapaz de ser o que é de verdade.
Outras vezes, esta música é parte de um coro e eu me sinto amparada. Ah! Como é delicioso ser junto sendo ainda o que sou!
A minha música pode ser uma balada, pode ser uma marcha - obsessiva marcha que pretende, a todo custo, se impor- e pode ser ainda tão sutil como sinfonia de violinos que vai se infiltrando e se imiscuindo no que de mais profundo existe em alguém.
E esta música, ela é capaz de ser tão branda, tão mansa, que pode fazer dormir uma criança. Pode ser, também, envolvente, enfeitiçar e trazer sob domínio todos os que compartilharem a mesma emoção. Ela pode trazer consolo e pode fazer chorar um ser sensível. Pode festejar, pode ser algazarra ou tão-somente música de fundo.
Mas o fato é que esta música, minha eterna companheira, pode até ser cantada por mim, mas o mais belo som é o que é tirado de mim, roubado por todo aquele que tiver o dom de me fazer vibrar, instrumento que sou.

Eram Tempos de Flor

Pensei em sair pela vida rumo a um futuro atraente como quem vai ao piquenique. Levaria uma enorme cesta em que caberiam, juntos, entrelaçados numa forte teia que sustentaria meus passos certos e seguros, os acontecimentos bons do passado. Seriam somente aqueles carregados de emoções positivas e imagens coloridas. E que teriam aquecido meu coração. Lembranças de gestos gentis e amorosos também estariam ali - dádivas concedidas por almas claras. Na minha cesta, eu colocaria, por exemplo:
- uma noite de chuva em que minha mãe sentou-se e delicadamente convidou minha cabeça a pousar sobre suas pernas enquanto eu estava estirada no sofá e acariciou meus cabelos - ela que era sempre tão ocupada, não se permitia parar e eu tão criança que ainda não tinha recebido um carinho tão significativo (nunca soube se para ela este fato marcou tanto quanto para mim);
- as incontáveis noites da infância em que perdia o sono e procurava meu pai para que ele ficasse acordado - mesmo que fosse de onde estava dormindo - até que eu pudesse voltar a adormecer; apenas o seu despertar calmo e sua voz doce que me dizia “Vai dormir, menina!” já eram suficientes para me tranqüilizar e trazer de volta o sono, mesmo nas noites em que eu já era adulta (e só me dei conta de sua importância depois que ele se foi);
- o momento aguardado o dia inteiro em que minha irmã mais velha, minha madrinha, me trazia um novo livro da biblioteca da fábrica em que trabalhava, grande, grosso e de capa dura azul-marinho; ela me trazia um mundo novo, porta que se abria para viagens fabulosas, inesperadas e inesquecíveis;
- tantas manhãs, tardes e noites de convivência com meus pais, minha avó e meus sete irmãos barulhentos, aos quais eu era visceralmente ligada e tão diferentes entre si que me permitiram desde cedo o contato profundo com a alma humana;
- a alegria assanhada que tantas vezes senti ao abrir a caixa do correio e olhar o envelope escrito com letra pequena e desenhada que eu levava para o banheiro para ler em paz, guardando para sempre o pedaço de papel rasgado para abrir a carta do meu amor, naquela época em que ainda só havia amizade entre nós (posso sentir ainda o misto de curiosidade, o calor no corpo e o coração acelerado);
- a tarde em que nos declaramos e sentimos pela primeira vez o entrelaçar de nossas mãos, num casamento perfeito das auras no dia em que uma amizade profunda se confirmou o amor da vida inteira.
São tantos momentos marcantes, que certamente esta cesta teria um fundo falso que me conduziria aos recônditos do inconsciente e, como jardineiro atento ao belo, eu poderia colher até o último dia as flores de minha vida, ainda que elas ocasionalmente tivessem crescido entre ervas daninhas indesejáveis e intrusas.
Pense em como seria a sua cesta, mas observe bem: idealizando-a, seja benevolente com você mesmo, atento ao que realmente lhe faz bem, use os olhos do coração ao escolher as lembranças e perdoe-se - ou à Vida - se seus tempos de flor foram escassos ou ficaram no passado, e lembre-se que é possível, ainda, criar para você um belo jardim florido.