sexta-feira, 31 de julho de 2009

Um Sonho

Desperta ofegante, com um gosto bom de beijo na boca, a pele aveludada, a cabeça nas nuvens, o corpo leve, renovado, com uma umidade doce no sexo, que a encanta e desconcerta.
Ao seu lado, dorme ainda a mulher, aconchegada entre as cobertas com o rosto calmo e a respiração tranquila, sua face emoldurada pelos cabelos curtos.
Senta-se com um sorriso nos lábios ainda molhados, o coração galopando e surpresa, recorda-se do sonho que tivera aquela noite. “Nele, era outra que estava com ela, que a olhava com os olhos penetrantes, puxando-a com doçura para si, envolvendo todo o seu corpo num abraço que a fazia estremecer. Sentia seu perfume, o toque das suas mãos ávidas procurando relembrar suas curvas, o seu calor a acordando de um sono profundo, inundando-a de um carinho que jamais esquecera. Foi tomada de um sentimento tão absoluto que soltou suas amarras e navegou no seu corpo, receptiva, experimentando novamente o mesmo amor que tinham vivido antes, se encharcando de doçura, com um prazer extasiante.”
Um prazer que ficou com ela. Seus dias eram felizes. Ela vivia um relacionamento estável com alguém de Terra e com uma Lua em Aquário que sendo generosa, toda meiguice e espontaneidade, guardava entretanto seu coração, que ainda inseguro do amor que lhe devotava, mesmo após tantos anos juntas, não se permitia uma entrega total.
Seu primeiro e grande amor, no fundo ela sabia que era a outra e que, soterrada no fundo de sua alma, havia ainda a esperança de tê-la novamente. Não era possível aceitar que um amor daquele, tivesse terminado sem explicação, que ela amasse outra pessoa e tivesse reconstruído a sua vida.
Não, ela sentia que ainda era seu e só seu o coração dela. E num cotidiano esquizofrênico, ela se dividia entre o amor que sentia e vivia na realidade daquele momento com a mulher amiga, carinhosa, descomplicada que estava com ela e o amor primeiro, vivido somente no íntimo, em segredo, pela mulher de longos cabelos, profunda, enigmática, com quem conversava em pensamentos e enviava sentimentos ardentes olhando o céu, mirando as estrelas e a lua cheia, ouvindo as suas músicas que, diariamente, insistiam em chegar aos seus ouvidos para que jamais a esquecesse.
Aceitava esta realidade que para ela era absolutamente normal, porque de fato, amava as duas pessoas, cada uma delas de uma forma, num universo diferente, as duas habitando o seu ser, inspirando-a e fazendo feliz.
Levantou-se então da cama, ainda imersa naquele universo paralelo, vibrante e apaziguada, trazendo aquela vivência só dela.
No banho, enquanto a água quente escorria pelas suas costas, relembrava cada instante, ainda incrédula, porque lhe parecia ter sido tudo tão real, como se a outra tivesse estado ali mesmo e houvessem se amado profundamente. Ela ainda podia sentir as impressões dos seus carinhos em sua pele, seu perfume no seu corpo, inconfundível, misto de presença e abandono, despedida e recordação.
Enfim, enquanto ensaboava as pernas, seus dedos trouxeram até seus olhos atônitos, neles enrolado, um fio de cabelo longo, um cabelo da outra, sem dúvida alguma, fininho e castanho-claro, testemunhando de forma inequívoca, a sua visita.
E, da mesma maneira como narrado no mito de Coleridge, ela se fazia a mesma pergunta.

“E se você dormisse, tivesse um sonho durante o sono, e nesse sonho você fosse ao céu, colhendo lá uma flor bonita e exótica e, depois, ao acordar, visse que a flor estava em sua mão? O que faria?”

O que faria agora?

E você, leitor, como agiria numa situação desta?
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Este post faz parte da blogagem coletiva de julho do blog Duelos Literários:
Histórias Fantásticas.

Nascido de Novo (Saulo Rosa)

Tudo corria bem na minha vida quando passei a apresentar problemas de digestão. Eu sempre fui de comer muito bem e nenhuma comida me parecia pesada. Na época em que essa história começou, eu estava com cinquenta e três anos, trabalhava com vendas, numa empresa grande onde já exercia a função de gerente há mais de dez anos, com bastante sucesso, o que era importante pra mim. A minha vida pessoal estava estabilizada e eu era feliz.
Sem qualquer causa aparente, passei a ter problemas com todo tipo de comida mais gordurosa. A princípio não liguei e fui usando chás que me recomendavam. Mas como não surtiram muito efeito e os sintomas se agravaram, com vômitos e dores abdominais, resolvi ir ao médico.
A minha família notou que eu estava emagrecendo e eu de fato estava e sentia também um certo desânimo. Assim, sem ter outra alternativa, aceitei me submeter ao escrutínio dos médicos que, nessa altura, já eram vários. Depois de quase dois meses de investigação e estando bem pior de tudo, veio a confirmação após uma cirurgia com biópsia: eu estava com câncer no pâncreas.
Depois de toda a desolação que este diagnóstico provoca, insisti com os médicos que eu queria saber de tudo com todos os detalhes e desejava participar das escolhas de tratamento e saber direitinho quais eram as chances e quanto tempo teria de vida.
Foi pior ainda porque nesse tipo de tumor as notícias não eram muito alentadoras. Segundo me afirmaram os médicos, eu deveria ter só mais um ano de vida, mesmo com a quimioterapia. A imagem do tumor na tomografia era feia e na cirurgia não puderam ressecar a lesão e fizeram a biópsia só pra confirmar que era maligna e poderem fazer a quimioterapia.
Pois bem, concluí que se eu seguisse esse tratamento, teria pouco tempo de vida e uma droga de vida dentro de hospital e tomando veneno. Mas todas as pessoas da família e amigos queriam me apoiar e ajudar a seguir o tratamento que para eles era a única forma sensata de lidar com algo assim tão grave.
Apesar de fisicamente eu estar um quase lixo, de ter parado a minha vida completamente, deixado de trabalhar e fazer qualquer coisa que fosse prazerosa, no fundo de mim mesmo eu sabia que havia uma saída. Só que não era aquela.
Quando consegui deixar o hospital, sem ter feito ainda qualquer tratamento efetivo, resolvi me acalmar e esperar até que viesse ao meu encontro alguma solução. Eu não rezava pra me salvar nem pensava em pesquisar nada de novo em relação a um possível tratamento para o meu caso.
Passados exatos três dias depois de minha volta para casa, acordei com uma palavra martelando na minha cabeça. Não sabia o que significava, mas ela permaneceu por várias horas me indicando que deveria pesquisar o que estava querendo me dizer. Depois de uma busca exaustiva na Internet cheguei a um Xamã que trabalhava no norte do Brasil. Fazia curas espantosas e não cobrava pelo trabalho. Nunca tinha tido conhecimento dessas coisas nem desse índio e seu nome me chegou como inspiração. Sabia então que caminho deveria seguir e confiei.
Viajei até lá sozinho, enfrentando todas as recriminações da família e dos amigos que quase me impediram de partir pela preocupação com meu estado. No entanto, eu sentia que precisava estar sozinho nesse momento, que essa seria a minha força e que eu contaria com todo o apoio que precisasse de uma outra esfera que não aquela material com a qual eu estava tão familiarizado.
O contato com o Xamã foi de apenas algumas horas. Eu não precisei dizer nada. Esperei por alguns minutos sentado no chão dentro de uma tenda, rodeado por grandes pedras que me transmitiam um enorme calor. Suei muito e quando ele entrou, não pude enxergá-lo com nitidez porque estava escuro dentro da tenda. Pediu que me deitasse com uma voz firme e ao mesmo tempo tranqüilizante, falando muito pouco num português comum. Suas mãos tocaram minha barriga com firmeza e cuidado e percebi que mexia profundamente no meu corpo, mas eu não sentia dor. Estava acordado e senti que ele retirou da minha barriga algo que tinha volume depois de fazer com os dedos movimentos precisos. Retirou-se e fiquei sozinho, com uma sensação estranha e ao mesmo tempo muito calmo e começando a ter sonolência. Não sei o que se passou depois que ele saiu. Dormi e quando acordei as pedras estavam lá e não havia mais o calor abrasador. Tudo estava silencioso do lado de fora. Eu me sentia bem. Resolvi levantar e sair. Encontrei o Xamã perto dali, sentado, tendo à sua volta crianças pequenas que o escutavam enquanto falava. Veio ao meu encontro. Disse-me que eu estava curado, que deveria voltar para casa só depois de ficar por um dia em repouso e silêncio, sem comer nada, podendo beber líquidos mornos em pequena quantidade. Falou que o que causou a minha doença tinha sido retirado e que eu ficaria muito bem. Fui tomado de grande emoção enquanto ele me parecia sereno e seus olhos me acalmavam. Nada mais perguntei. Fui embora dali como hipnotizado e nunca me esqueci da sua imagem e de tudo que vivi naquele dia.
Voltei para casa na noite do dia seguinte. Sentia-me muito bem. A minha família ficou aliviada ao me ver de volta. Não me estendi no relato da viagem e do tratamento que fiz. Precisava descansar. Ninguém parecia compreender o meu estado. Eu me sentia em paz e muito voltado para mim mesmo, como nunca tinha estado antes. Os dias se passaram e eu fui ficando cada vez melhor. Voltei a me alimentar aos poucos e já não tinha qualquer incômodo. As pessoas não entendiam como aquilo estava acontecendo. O tempo passou, fui aos poucos me recuperando, ganhando peso. Voltei a trabalhar. Voltei a ter a vida normal que sempre tive, sem que todos que acompanharam de perto o meu caso pudessem acreditar que eu estava curado. Não liguei, eu sabia que estava.
Depois de um ano de muita insistência das pessoas que me amavam, voltei aos médicos que não conseguiram explicar a minha evolução. Falaram em cura espontânea, mas insistiram em me investigar. Eu estava muito bem e permiti que fossem feitos novos exames. Para o espanto dos médicos não havia qualquer vestígio da doença e isto nunca acontecia em casos como o meu, com o diagnóstico comprovado de câncer do pâncreas e no grau de comprometimento que tinha já alcançado.
Eu estava curado realmente. E continuo em perfeita saúde até hoje quando já se passaram sete anos.
Compreendi depois de todo esse tempo que eu tive a minha chance, que pude percebê-la e aproveitá-la. Para isso percebi os sinais, me entreguei e segui o caminho que a vida me apontava. E mais que tudo isso, fui capaz de a partir desse acontecimento, mudar a perspectiva de enxergar a vida, o que representou de fato a verdadeira cura.