segunda-feira, 15 de junho de 2009

A Arte de Ser (Aline)

Durante anos, em minha vida, eu convivi com um espírito responsável e altruísta. Sempre afoito com o seu cotidiano, aflito com a tarefa de prover a boa ordem, irrequieto, mas fiel à composição dos painéis, dos vidros, das escamas e das relações.
Eu observava as superfícies reluzentes, as paredes alvas e das mãos muito limpas, extirpada a beleza que é fornecida pelo caos. Eu perscrutei, e não encontrei frestas no ego hermético, empertigado, doce e lúcido.
Mas eis que com o auxílio do temperamento plácido da gradação, o teto da cabana quer ruir. Os muros descobrem a dança, os cômodos se travestem com texturas excêntricas, inventam tessituras, gestam hálitos e sabores coloridos.
As formas geométricas são as primeiras a dobrarem o corredor. O violeta frio nos lampejos, as telas pequenas e tímidas.
E o olhar do espírito se desvia, cria, na matéria e na fantasia, as rotas alternativas, os abismos gélidos e as escarpas sinuosas.
As torrentes de calor e do laranja se apropriam da expressão, em forma de ciranda, de deserto e de travessias tropicais.
Os quadrados se arredondam, se deparam com a perfeição do réprobo. Os pincéis se esgotam com a destreza dos dedos. A inspiração torrencial satura os seus veículos: a caldeira transborda.
Céus, faunas e floras se misturam à noite, aos sóis, à neve e ao marítimo. A espátula constrói naus, passageiros e valsas no convés. As rachaduras despontam com os cães azuis fantasmáticos: as linhagens de cérberos esparsas pelo inconsciente, cada cabeça abocanhando um destino.
A verdejância de pepinos bem americanos dentro de um cândido celeste.
O espírito, talvez, não se reconheça nesse ato. Talvez duvide da realidade das mãos brancas e calejadas.
As tarefas se desmembram e se abrigam no irrisório.
A pulsação é mais vívida. E como comprovação máxima para esse espírito racional e telúrico, o prestidigitador da existência se enlaça à Energia, e a velocidade traz o amor, com seu suporte e sua expansão.
Então nascem olhos luminescentes de Febo nos núcleos das margaridas. E no centro da Terra, as sacerdotisas velam a Deusa-mãe.
Os Xamãs enlaçam o vento e golpeiam a tempestade. Os curandeiros tremem e explodem em lilás.
Eu, um espectador assombrado e atônito, crescendo e assistindo à maturação.
As gargantas profundas abarcam as dores, a entrega e a grandeza do retorno. As Iabás desfalecidas, nas areias, encantam os passantes; fazem feitiços e sopram o pó mágico da transcendência sobre os olhares duros.
O clã dos espíritos também se aquece e se auto-permite. Migra de encontro ao calor. Atravessa túneis e acende lamparinas.
As maçãs cor-de-rosa narram os romances, a tragédia e o final feliz. As pétalas se eximem do engajamento, na unidade da flor. O firmamento afasta as cortinas, e o que se vê é um sistema só de sóis e de luz pura. O ventre da Grande Mãe nutre falos, fantasmas e bolas de fogo. Pavões bebericam, curvados sobre o lago, e nasce o Penacho.
Esse espírito vive dentro de Alba, que espera, pinta, teme, treme e ama. É a noviça que alcançou o desfecho físico do Mundo, e com um pé na terra e outro no nada, tomou a flauta de Hermes e invocou as brumas; entrou na canoa, transpôs as águas e chegou à Ilha, à imensidão do ser.

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